10/02/2021
“Uma ideia é como um vírus. Resistente. Altamente contagioso. A menor semente de uma ideia pode crescer para definir ou destruir você. As menores ideias como ‘o seu mundo não é real’. Um simples pensamento que muda tudo”.
Essa é uma das minhas frases preferidas, de um dos meus filmes preferidos. Na origem, dirigido por um gênio criativo genuíno, Christopher Nolan, Cobb é um profissional responsável por inserir na cabeça das pessoas ideais pré-construídos. Ele entra em seus sonhos, muda as suas lembranças e, com isso, redefine a maneira com que você vê o mundo.
Cobb, cujo trabalho é implementar ou adulterar as ideias de seus alvos.
Há um grande número de obras, produzidas por pensadores do quilate de Aristóteles e Santo Agostinho, que discutem sobre a relação entre imaginação e memória. E o que isso quer dizer?
Que um publicitário, treinado e educado, é capaz de transitar por entre esses dois campos, assim como o protagonista da ficção, incutindo no seu público a ideia de que aquele pensamento teve origem dentro da sua própria cabeça. E é isso que os melhores das suas áreas fazem.
Não há criatividade sem imaginário e não há imaginário sem muito estudo.
A relação entre boa escrita, domínio da língua e dos símbolos sempre existiu. Bardos, poetas, feiticeiros e membros do Clero sempre estiveram entre os principais conselheiros do rei; e essa proximidade estratégica com a mais alta corte não é obra do acaso.
Alan Moore, um dos ícones da cultura pop, certa vez disse em uma de suas entrevistas mais famosas:
“A magia, na sua forma mais antiga, é referida como ‘A Arte’. Creio que isso seja completamente literal. Creio que a magia é arte e que essa arte seja a escrita, a música ou a escultura […] A arte é, como a magia, a ciência de manipular os símbolos, palavras ou imagens, para operar mudanças de consciência.
A verdadeira linguagem da magia trata tanto da escrita como de arte e também sobre questões sobrenaturais. Um grimório ou um livro de feitiços é uma forma extravagante de se falar sobre gramática; conjurar um encantamento é somente manipular as palavras para mudar a consciência das pessoas. Eu acredito que um artista ou escritor é o mais perto que você poderia chamar de um mago do mundo contemporâneo”.
Allan Moore.
E ele vai além: “Em toda a magia há um componente linguístico incrivelmente grande. A tradição mágica dos bardos colocava essas pessoas em um lugar muito mais alto e mais temível do que um mago. Um mago pode te amaldiçoar […] um bardo não te amaldiçoaria, ele faria uma sátira, que poderia te destruir.
Se fosse uma sátira brilhante, não te destruiria somente aos olhos dos teus sócios, te destruiria ante os olhos da sua própria família e te consumiria ante os teus próprios olhos. Se fosse uma sátira realmente bem feita, o bastante para sobreviver e ser recordada durante décadas, inclusive por séculos, anos e anos depois da sua morte as pessoas ainda leriam e ririam de você, da sua ruína e da sua miséria”.
Nos últimos 2 mil anos a manipulação das palavras e dos símbolos estava reclusa a uma classe altamente especializada. Foi só no século passado que decidimos esquecer tudo isso e focar na venda de refrigerantes.
Quando David Ogilvy acabou o seu primeiro livro, Confissões de um Publicitário, ele disse: “Essa foi a minha maior carta de vendas”. Ele não só imortalizou o seu nome e o da sua agência, como criou todo um culto em torno da sua obra. David, escocês, se educou classicamente. Seu irmão, Francis, o dono da agência, era capaz de ler em grego antigo e o pai deles, levava os livros dos poetas clássicos ao banheiro.
O resultado dessa educação? Ao invés de um comunicador afetado, arrogante e distante da realidade, vimos um sujeito capaz de dialogar com as massas, cativá-las, introduzir marcas de sucesso nos Estados Unidos, país que adotou como o seu, e eleger alguns presidentes da república.
Quando o assunto é comunicação política, ninguém no planeta elegeu mais líderes do que o João Santana.
Em que pese a sua ausência de caráter, o publicitário do PT é um gênio. Conseguiu, literalmente, reverter na unha uma campanha eleitoral condenada ao fracasso, quando criou o filme publicitário “os fantasmas do passado”. Em uma entrevista à revista Época, ele cita as suas inspirações: “Homero, Cervantes, Shakespeare, Proust, Kafka, Dostoiévski, Melville, Camus, Machado de Assis, T. S Eliot…”.
Grandes campanhas. Grandes resultados. Outro exemplo de comunicador fora da curva é o Ryan Holiday. Aos vinte e poucos anos ele abandona a sua universidade para se tornar o responsável pelas campanhas publicitárias da American Apparel, uma das empresas de varejo mais polêmicas dos Estados Unidos.
A receita? Muito estudo. Ryan, conforme ele cita em um dos seus livros, estudou toda a história do jornalismo, do marrom, político, ao literário, com narrativa romântica, se diz fã das técnicas de persuasão de Noam Chomsky e credita a todo esse conhecimento os seus surtos de criatividade produtiva.
William Strunk, antigo professor da Universidade de Cornell, sintetiza todo esse pensamento de maneira genial.
Para preservação do contexto, conservarei a frase na língua original: “A sentence should contain no unnecessary words, a paragraph no unnecessary sentences, for the same reason that a drawing should have no unnecessary lines and a machine no unnecessary parts. This requires not that the writer make all his sentences short, or that he avoid all detail and treat his subjects only in outline, but that every word tell”.
Não é difícil imaginar porque a nossa publicidade anda tão ruim. É ainda mais fácil perceber que, conforme ela corre ladeira abaixo, cada vez mais os cachorrinhos, gatos e bebês ocupam, repetidamente, o centro de qualquer campanha ou propaganda. Nos resumimos a isso: a um conjunto de pós-universitários fracos e sem qualquer elasticidade criativa.
David Ogilvy ditou o hino da nossa geração: “Se não vende, não é criativo”.
Pronto, como que em um passe de mágicas, a receita e o caixa justificaram qualquer tipo de sandice. Os motivos para a nossa atual miséria são muitos: a precariedade do nosso ensino de base, a ausência de literatura e do costume de consumi-la, mas principalmente: porque as nossas universidades são uma merda.
Sim, é verdade. Grande parte da culpa por uma geração estéril está nos ombros do nosso sistema universitário. Na série House of Cards, o protagonista demite o seu diretor de campanha, um publicitário, para contratar um escritor no lugar. O que acontece? O nível das suas narrativas aumenta, a conexão e a sensação de pertencimento explode e o envolvimento passa a acontecer de uma maneira muito mais natural.
O anúncio mais famoso do David Ogilvy
Quando o marketing digital se popularizou, principalmente nos últimos três anos, o nível caiu ainda mais. Um exército de jovens, que vinham de qualquer área, atrás de dinheiro fácil, abundante e o trabalho na sala de casa, se auto-denominaram “especialistas em marketing”.
Embaixo do braço os mesmos livros, alguns gatilhos mentais e uma assinatura em alguma dessas ferramentas que levanta páginas automaticamente. Uma dúzia de setas, botões dourados e um fundo de praia. Pronto, essa era a nova classe de profissionais criativos do país!
Com seus vídeos de vendas de 50 minutos, roteiro pré-definido, que sempre começava e terminava da mesma forma, a preocupação nunca foi a construção de uma ótima percepção de marca ou coisa do tipo; o que importava era um ROI que custeasse todo o operacional e uma lista nova a cada final de ação publicitária, já que o abandono e a fidelidade eram altíssimos. E é aqui que nos encontramos, atualmente.
O mercado é grande e está aberto. Há poucos redatores de qualidade, criativos e estéticos, capazes de se comunicarem com clareza e objetividade. O Medium anunciou, recentemente, que iniciará um processo de remuneração e receita aos bons produtores de conteúdo, que será possível graças a uma solução até então inédita — e, de certa forma, ainda misteriosa.
O próprio mercado de marketing digital está amadurecendo e as páginas criadas pelas maquininhas estão dando lugar ao design pensado e preparado por quem entende. Design, aliás, é fundamental para um bom redator.
Pouco a pouco os roteiros de formulinha vão dando ligar às narrativas originais e os discursos de venda copiados e colados dos modelinhos vão sendo substituídos pela escrita genuinamente criativa. Apesar da crise, há mais vagas do que candidatos. Ao passo que enxergamos o sumiço dos falsos-publicitários, os comunicadores e profissionais criativos verdadeiros nunca tiveram tanto trabalho.
Aqui vão três dicas rápidas para que você aumente consideravelmente o nível da sua interpretação de texto, do seu imaginário e, consequentemente, da sua escrita e da sua narrativa. A primeira coisa que você deve ter em mente é que a criação de um enredo, peça, propaganda ou roteiro depende muito mais da sua capacidade de leitura do ser humano, da persona do seu contratante, do que a quantidade de gatilhos mentais que você irá utilizar.
Se você puser em prática essas três dicas já terá, no médio prazo, melhorado muito todas essas qualidades.
Moby Dick, de Herman Melville.
Esqueça os livros de administração, negócios, marketing e propaganda. Esqueça essa baboseira toda de sonho grande e o oceano azul. A pior coisa que pode existir para um profissional criativo é se manter — débil e insistentemente — nesse universo da literatura de auto-ajuda.
Isso mesmo: livros de empreendedorismo são, hoje, os substitutos para a auto-ajuda. Dá menos vergonha e você se sente mais útil.
“Trate-me por Ismael. Há alguns anos — não importa quantos ao certo –, tendo pouco ou nenhum dinheiro no bolso, e nada em especial que me interessasse em terra firme, pensei em navegar um pouco e visitar o mundo das águas. É o meu jeito de afastar a melancolia e regular a circulação.
Sempre que começo a ficar rabugento; sempre que há um novembro úmido e chuvoso em minha alma; sempre que, sem querer, me vejo parado diante de agências funerárias, ou acompanhando todos os funerais que encontro; e, em especial, quando minha tristeza é tão profunda que se faz necessário um princípio moral muito forte que me impeça de sair à rua e rigorosamente arrancar os chapéus de todas as pessoas — então percebo que é hora de ir o mais rápido possível para o mar.
Esse é o meu substituto para a arma e para as balas. Com garbo filosófico, Catão corre à sua espada; eu embarco discreto num navio. Não há nada de surpreendente nisso. Sem saber, quase todos os homens nutrem, cada um a seu modo, uma vez ou outra, praticamente o mesmo sentimento que tenho pelo oceano”.
Isso é o primeiro parágrafo de Moby Dick. O primeiro parágrafo! Esses são os primeiros períodos que te recebem em um livro de quase 600 páginas. Esse tipo de leitura acentua a sua narrativa quanto ao desejo, ao desespero, à sensação de vazio; a necessidade constante de se buscar algo…se não consegue imaginar como esse primeiro terço de página pode lhe tornar um publicitário muito melhor, eu tenho péssimas notícias para você.
Eu vou te contar um dos meus maiores segredos, até porque os copistas já haviam descoberto há mil anos: o texto é apenas um percentual do elemento de atenção em uma narrativa. Tudo que há em volta age como uma moldura; da mesma forma que não há quadros sem moldura, a não ser esses modernos, toscos, tudo que envolva o processo de confecção da sua ideia também conta.
Se é um vídeo? A iluminação, o jogo de câmeras, o corte, a fotografia. Se é uma página de vendas, site, e-commerce, a qualidade das imagens, dos espaços em branco, da ausência… nunca subestime a ausência.
Poucas coisas falam tanto quanto um layout que só exibe o que é necessário.
Aprimore o seu senso estético.
Estude design.
Bons escritores produziam como loucos. O que você anda fazendo no seu tempo livre? Se o seu desejo é — realmente — se tornar um grande profissional criativo, você deve dedicar pelo menos uma porção generosa do seu tempo para isso. Produza textos, roteiros, novelas, contos, pequenos teasers; gere buzz. Se force a produzir algo primoroso nas limitações dos 140 caracteres do Twitter.
Leia e aprenda com os Koans budistas e tente reproduzi-los. Você só se tornará um bom escritor depois de pelo menos mil trabalhos medíocres. Qualquer coisa antes disso é fórmula mágica; são sonhos e é enganação.
É a última mesmo, eu prometo. Sei que o artigo ficou grande: quantos gênios precoces você já viu cursando matemática, física, engenharia? Quantos meninos, com 8 ou 10 anos de idade, já são mestres em computação e programação?
Agora, quantos redatores, escritores, contistas e poeta você já viu com essa idade? Não há precocidade na escrita, justamente porque ela depende de um emaranhado de emoções, uma carga literária descomunal e um longo histórico de sofrimentos, desilusões e conquistas…
E tudo isso está lá, nos livros, nos clássicos, em uma dimensão que nem eu nem você jamais viveremos, com uma riqueza milenar que nós jamais experimentaremos.
Saia agora desse poço escuro que é o tempo presente e vá conquistar o mundo.
AUTOR: ÍCARO DE CARVALHO
FONTE: O NOVO MERCADO
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